Ética científica – parte II

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Um dos campos científicos que tem despertado grande interesse da comunidade, principalmente nas duas últimas décadas, é o da neurociência. Em termos comuns pode-se dizer que esta área do conhecimento envolve toda e qualquer informação concernente à compreensão dos mecanismos que regem o funcionamento do cérebro.

Por muito tempo os neurocientistas encararam o órgão mais complexo do corpo humano como uma “caixa preta”, donde seria muito difícil de se extrair qualquer tipo de informação que fosse além da sua neurofisiologia… O funcionamento dessa intrincada rede neuronal ao nível molecular constituía uma barreira que muitos acreditavam ser intransponível !

Tamanha descrença serviu como alicerce para o estabelecimento de mais um “dogma científico”: o da imutabilidade cerebral.

Há algum tempo ainda era muito comum no meio médico ouvir-se que uma lesão cerebral era irreparável. Atualmente não precisamos mais que um “super-homem” (o ator Christopher Reeve), com seu inigualável exemplo de perseverança e amor à vida, pudesse nos revelar o contrário…

O desenvolvimento da neuroquímica, genética e das novas técnicas de imageamento cerebral possibilitaram a eclosão de uma verdadeira revolução das neurociências nas décadas de 80 e 90. Tais progressos foram fundamentais para se antecipar diagnósticos e acompanhar tratamentos.

No caso do neuroimageamento a possibilidade de observação não-invasiva do cérebro em funcionamento permitiu que os médicos reconhecessem aspectos estruturais e padrões de atividade cerebral característicos de certos transtornos psíquicos como esquizofrenia, distúrbio bipolar e depressão.

No campo da genética, por sua vez, certas variações gênicas indicaram o risco de se desenvolver depressão ou distúrbio bipolar, bem como certas doenças neurodegenerativas tal como o mal de Alzheimer. As manifestações sintomáticas de diversos distúrbios mentais, desde a depressão até o mal de Parkinson são, assim, controláveis graças às fantásticas descobertas da neuroquímica!

O surgimento das “pílulas da inteligência”

Com o interesse das grandes indústrias farmacêuticas nas novas drogas neuroativas, descobriram-se  pílulas verdadeiramente “miraculosas”,  capazes de intervir nos mais complexos sistemas de neurotransmissores e estão causando um enorme furor   devido às suas implicações sociais…

Isto se deve ao surgimento de uma nova geração de drogas estimuladoras da memória, também chamadas de “Viagras para o cérebro” ou “pílulas da inteligência”, o que tem gerado um sério debate ético acerca do uso indiscriminado da melhoria cognitiva. Sobre este tema, o filósofo Leon Kass, chefe do Conselho de Bioética dos EUA, escreveu o seguinte:

“Nestas áreas da vida humana, onde a excelência tem sido obtida pela disciplina e o esforço, a conquista de resultados com o uso de drogas, engenharia genética ou implantes parece ardilosa”.

A possibilidade de um tipo de “ajuste” dos neurônios para se aprimorar a capacidade do cérebro pode constituir um sério problema ético, tendo-se em vista que deve acirrar ainda mais a desigualdade social. Diversas questões éticas foram suscitadas pelos recentes desenvolvimentos da neurociência, dentre as quais pode-se destacar 2 indagações:

  1. Seria realmente terrível se as técnicas usadas para se tratar o mal de Alzheimer possibilitassem modos de se aprimorar a memória normal ?
  2. Qual é a “imoralidade” de alterar o cérebro para aperfeiçoar o seu desempenho, dotando-o de melhores capacidades do que aquelas possuídas por nossos pais?

Penso eu que a moral e os bons princípios devem primar pelo discernimento, sem frear a evolução científica! Fica claro que a problemática se resume ao acesso às chamadas “pílulas da inteligência” porque os ricos teriam a possibilidade de aprimoramento dos seus cérebros em detrimento da população mais pobre…

Este fato rompe irreversivelmente os liames do dia-a-dia, ocasionando situações extremamente injustas como nos processos seletivos de emprego ou até mesmo em exames de vestibular. A questão reside no seguinte: como manter as condições de igualdade nestas circunstâncias?

Contudo, não se pode negar que faz parte da própria essência humana tentar aprimorar o mundo e a si mesma (a raça). Um melhor desempenho cognitivo seria providencial em certas profissões que requerem grande esforço intelectivo como a dos próprios cientistas…

Imaginem vocês o que um Einstein não o faria sobre os efeitos do Donepezil?

Caberá às instituições legais de cada país, portanto, a tarefa de rever seus códigos legais de modo a englobar os novos aspectos que surgem com o desenvolvimento das neurociências. Só assim a neuroética poderá regulamentar a vida social, propiciando o acesso justo às novas técnicas científicas e banindo os abusos delas advindos.

Afinal de contas, não seria tão difícil de se imaginar num futuro não muito distante os candidatos a uma vaga para trainee de uma grande empresa como a IBM passando por um exame antidoping antes do teste de seleção…

Desenvolvimento tecnológico da nações

Os avanços científicos implicam ainda numa questão social estratégica para o desenvolvimento tecnológico das nações, podendo significar grande “gargalo” para países em desenvolvimento como o Brasil…

A geração e gestão do conhecimento para tomada de decisão estratégica são a “força-motriz” da sociedade pós-industrial, representando o novo paradigma social.

Se nos dois últimos séculos a produção de bens de consumo e o acúmulo de capital constituíram a maior fonte de riquezas, hoje pode-se observar radical inversão de valores com os volumes massivos de dados (o tal do big data) e a informação deles advinda,  assumindo o papel de protagonistas dos nossos tempos!

Da mesma forma que o “direito de propriedade” regula as transações dos bens móveis e imóveis que usufruímos, as leis de propriedade intelectual asseguram o direito de exclusividade na exploração comercial do conhecimento aplicado, ou melhor, das tecnologias inovadoras.

O registro de marcas, modelos de utilidades, depósito de patentes e a reserva de direitos autorais são os mecanismos legais voltados para proteção da propriedade intelectual. Cada país possui uma legislação específica sobre o tema, entretanto, existe uma tendência no âmbito global de se uniformizar estas regras através de tratados internacionais.

Entretanto, pode-se vislumbrar nuances no respeito aos tratados internacionais, como exaltado pelo Brasil na OMC ao infringir as leis de patentes para poder produzir em seu território o coquetel de drogas anti-HIV que abriu caminho para estruturação da indústria de medicamentos genéricos, representando importante conquista da sociedade brasileira.

São medidas como estas que nos alertam para a importância da ética sobretudo nas relações estatais, servindo de exemplo em diversos campos da ciência, tecnologia e inovação, conquanto haja um órgão internacional regulador, imparcial e isento de interesses meramente regionais, políticos ou econômicos.

É exatamente aí que são suscitadas diversas questões éticas, em especial quanto aos limites de aplicação da legislação vigente dos países em desenvolvimento, como aconteceu na história recente do Brasil com a polêmica da clonagem humana e dos transgênicos…

Mais uma vez questiono o leitor: até que ponto se deve frear o desenvolvimento da ciência? A resposta fica para cada um, mas a consciência da coletividade é uma só!

Créditos:

Autoria por ricardobarreto.com

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Saiba mais:

  1. Hyman, S. E. Sci. Am. Bras. 2003, 17, 88-95.
  2. Hall, S. Sci. Am. Bras. 2003, 17, 48-57.
  3. Barreto, Henri B. F. Revista Internacional do Espiritismo, ano LXXIX, No 12, 2005, 648-650.